Terça-feira, 29.05.12
"Dizem-se muitas mentiras acerca da
Festa do Avante! Estas são as mais populares: que é irrelevante; que é um
anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que
já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.
Já é a segunda vez que lá vou e
posso garantir que não é nada dessas coisas e que não só é escusado como
perigoso fingir que é. Porque a verdade verdadinha é que a Festa do Avante faz
um bocadinho de medo.
O que se segue não é tanto uma
crónica sobre essa festa como a reportagem de um preconceito acerca dela - um
preconceito gigantesco que envolve a grande maioria dos portugueses. Ou pelo
menos a mim.
Porque é que a Festa do Avante faz
medo?
É muita gente; muita alegria; muita
convicção; muito propósito comum. Pode não ser de bom-tom dizê-lo, mas o choque
inicial é sempre o mesmo: chiça! Afinal os comunistas são mais que as mães. E
bem-dispostos. Porquê tão bem dispostos? O que é que eles sabem que eu ainda não
sei?
É sempre desconfortável estar
rodeado por pessoas com ideias contrárias às nossas. Mas quando a multidão é
gigante e a ideia é contrária é só uma só – então, muito francamente, é
aterrador.
Até por uma questão de respeito, o
Partido Comunista Português merece que se tenha medo dele. Tratá-lo como uma
relíquia engraçada do século XX é uma desconsideração e um perigo. Mal por mal,
mais vale acreditar que comem criancinhas ao pequeno-almoço.
Bem sei que a condescendência é uma
arma e que fica bem elogiar os comunistas como fiéis aos princípios e
tocantemente inamovíveis, coitadinhos.
É esta a maneira mais fácil de
fingir que não existem e de esperar, com toda a estupidez que, se os ignoramos,
acabarão por se ir embora.
As festas do Avante, por muito que
custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas.
É espantoso ver o que se alcança com
um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os
outros, como no nobre, que é trabalhar de graça.
A condescendência leva-nos a
alvitrar que “assim também eu” e que as festas dos outros partidos também seriam
boas caso estivessem um ano inteiro a prepará-las. Está bem, está: nem assim iam
lá. Porque não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E querer
só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai
mudá-lo.
Em vez de usar, para explicar tudo,
o velho chavão da “capacidade de organização” do velho PCP, temos é que
perguntar porque é que se dão ao trabalho de se organizarem.
Porque os comunistas não se limitam
a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria
história. É por isso que não podem parar; que aguentam todas as derrotas e todos
os revezes; que são dotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética
paciência; porque acreditam que são a última barreira entre a civilização e a
selvajaria. E talvez sejam. Basta completar a frase "se não fossem os
comunistas, hoje não haveria"... e compreende-se que, para eles, são muitas as
conquistas meramente "burguesas" que lhes devemos, como o direito à greve e à
liberdade de expressão.
É por isso que não se sentem
“derrotados”. O desaparecimento da URSS, por exemplo, pode ter sido chato mas,
na amplitude do panorama marxista-leninista, foi apenas um contratempo. Mas não
é só por isso que a Festa do Avante faz medo. Também porque é convincente. Os
comunas não só sabem divertir-se como são mestres, como nunca vi, do à-vontade.
Todos fazem o que lhes apetece, sem complexos nem receios de qualquer espécie.
Até o 'show off' é mínimo e saudável.
Toda a gente se trata da mesma
maneira, sem falsas distâncias nem proximidades. Ninguém procura controlar,
convencer ou impressionar ninguém. As palavras são ditas conforme saem e as
discussões são espontâneas e animadas. É muito refrescante esta honestidade. É
bom (mas raro) uma pessoa sentir-se à vontade em público. Na Festa do Avante é
automático.
Dava-nos jeito que se vestissem
todos da mesma maneira, dissessem e fizessem as mesmas coisas - paciência.
Dava-nos jeito que estivessem eufóricos; tragicamente iluminados pela
inevitabilidade do comunismo - mas não estão. Estão é fartos do capitalismo - e
um bocadinho zangados.
Não há psicologias de multidões para
ninguém: são mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante.
Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é
forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo até o aborrecimento. Ou
seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa num comício ou numa festa
obrigatória. Muito menos comunista.
Sabe bem passear no meio de tanta
rebeldia. Sabe bem ficar confuso. Todos os portugueses haviam de ir de cinco em
cinco anos a uma Festa do Avante, só para enxotar estereótipos e baralhar
ideias. Convinha-nos pensar que as comunas eram um rebanho mas a parecença é
mais com um jardim zoológico inteiro. Ali uma zebra; em frente um leão e um
flamingo; aqui ao lado uma manada de guardas a dormir na relva.
Quando se chega à Festa o que mais
impressiona é a falta de paranóia. Ninguém está ansioso, a começar pelos
seguranças que nos deixam passar só com um sorriso, sem nos vasculhar as malas
ou apalpar as ancas. Em matéria de livre trânsito, é como voltar aos anos
60.
Só essa ausência de suspeita vale o
preço do bilhete. Nos tempos que correm, vale ouro. Há milhares de pessoas a
entrar e a sair mas não há bichas. A circulação é perfeitamente sanguínea. É
muito bom quando não desconfiamos de nós.
Mesmo assim tenho de confessar, como
reaccionário que sou, que me passou pela cabeça que a razão de tanta preocupação
talvez fosse a probabilidade de todos os potenciais bombistas já estarem lá
dentro, nos pavilhões internacionais, a beber copos uns com os outros e a
divertirem-se.
A Festa do Avante é sempre maior do
que se pensa. Está muito bem arrumada ao ponto de permitir deambulações e
descobertas alegres. Ao admirar a grandiosidade das avenidas e dos quarteirões
de restaurantes, representando o país inteiro e os PALOP, é difícil não pensar
numa versão democrática da Exposição do Mundo Português, expurgada de pompa e de
artifício. E de salazarismo, claro.
Assim se chega a outro preconceito
conveniente. Dava-nos jeito que a festa do PCP fosse partidária, sectária e
ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não podia ser mais portuguesa e
saudavelmente nacionalista.
O desaparecimento da União Soviética
foi, deste ponto de vista, particularmente infeliz por ter eliminado a potência
cujas ordens eram cegamente obedecidas pelo PCP.
Sem a orientação e o financiamento
de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande
chatice.
Quer se queira quer não (eu não
queria), sente-se na Festa do Avante que está ali uma reserva ecológica de
Portugal. Se por acaso falharem os modelos vigentes, poderemos ir buscar as
sementes e os enxertos para começar tudo o que é Portugal outra
vez.
A teimosia comunista é culturalmente
valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A diferença às modas e
às tendências dos comunistas não é uma atitude: é um dos resultados daquela
persistência dos nossos hábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que
reforça e eterniza só por ser praticada. (Fiquemos por aqui que já estou a
escrever à comunista).
A Exposição do Mundo Português era
“para inglês ver”, mas a Festa do Avante em muitos aspectos importantes, parece
mesmo inglesa. Para mais, inglesa no sentido irreal. As bichas, direitinhas e
céleres, não podiam ser menos portuguesas. Nem tão-pouco a maneira como cada
pessoa limpa a mesa antes de se levantar, deixando-a impecável.
As brigadas de limpeza por sua vez,
estão sempre a passar, recolhendo e substituindo os sacos do lixo. Para uma
festa daquele tamanho, com tanta gente a divertir-se, a sujidade é quase
nenhuma. É maravilhoso ver o resultado de tanto civismo individual e de tanta
competência administrativa. Raios os partam.
Se a Festa do Avante dá uma pequena
ideia de como seria Portugal se mandassem os comunistas, confessemos que não
seria nada mau. A coisa está tão bem organizada que não se vê. Passa-se o mesmo
com os seguranças - atentos mas invisíveis e deslizantes, sem interromper nem
intimidar uma mosca.
O preconceito anticomunista dá-os
como disciplinados e regimentados – se calhar, estamos a confundi-los com a
Mocidade portuguesa. Não são nada disso. A Festa funciona para que eles não
tenham de funcionar. Ao contrário de tantos festivais apolíticos, não há pressa;
a ansiedade da diversão; o cumprimento de rotinas obrigatórias; a preocupação
com a aparência. Há até, sem se sentir ameaçado por tudo o que se passa à volta,
um saudável tédio, de piquenique depois de uma barrigada, à espera da ocupação
do sono.
Quando se fala na capacidade de
“mobilização” do PCP pretende-se criar a impressão de que os militantes são
autómatos que acorrem a cada toque de sineta. Como falsa noção, é até das mais
tranquilizadoras. Para os partidos menos mobilizadores, diante do fiasco das
suas festas, consola pensar que os comunistas foram submetidos a uma lavagem ao
cérebro.
Nem vale a pena indagar acerca da
marca do champô.
Enquanto os outros partidos puxam
dos bolsos para oferecer concertos de borla, a que assistem apenas familiares e
transeuntes, a Festa do Avante enche-se de entusiásticos pagadores de
bilhetes.
E porquê? Porque é a festa de todos
eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá estar. Não há a distinção
entre “nós” dirigentes e “eles” militantes, que impera nos outros partidos. Há
um tu-cá-tu-lá quase de festa de finalistas.
É um alívio a falta de entusiasmo
fabricado – e, num sentido geral de esforço. Não há consensos propostos ou
unanimidades às quais aderir. Uns queixam-se de que já não é o que era e que
dantes era melhor; outros que nunca foi tão bom.
É claro que nada disto será novidade
para quem lá vai. Parece óbvio. Mas para quem gosta de dar uma sacudidela aos
preconceitos anticomunistas é um exercício de higiene mental.
Por muito que custe dize-lo, o
preconceito - base, dos mais ligeiros snobismos e sectarismos ao mais feroz
racismo, anda sempre à volta da noção de que “eles não são como nós”. É muito
conveniente esta separação. Mas é tão ténue que basta uma pequena aproximação
para perceber, de repente, que “afinal eles são como nós”.
Uma vez passada a tristeza pelo
desaparecimento da justificação da nossa superioridade (e a vergonha por ter
sido tão simples), sente-se de novo respeito pela cabeça de cada
um.
Espero que não se ofendam os
sportinguistas e comunistas quando eu disser que estar na Festa do Avante foi
como assistir à festa de rua quando o Sporting ganhou o campeonato. Até aí eu
tinha a ideia, como sábio benfiquista, que os sportinguistas eram uma minúscula
agremiação de queques em que um dos requisitos fundamentais era não gostar muito
de futebol.
Quando vi as multidões de
sportinguistas a festejar – de todas as classes, cores e qualidades de camisolas
-, fiquei tão espantado que ainda levei uns minutos a ficar profundamente
deprimido.
Por outro lado, quando se vê que os
comunistas não fazem o favor de corresponder à conveniência instantaneamente
arrumável das nossas expectativas – nem o PCP é o IKEA -, a primeira reacção é
de canseira. Como quem diz: ”Que chatice – não só não são iguais ao que eu
pensava como são todos diferentes. Vou ter de avaliá-los um a um. Estou tramado.
Nunca mais saio daqui.”
Nem tão pouco há a consolação
ilusória do 'pick and choose'.
... É uma sólida tradição dizer que
temos de aprender com os comunistas... Infelizmente é impossível. Ser-se
comunista é uma coisa inteira e não se pode estar a partir aos bocados. A força
dos comunistas não é o sonho nem a saudade: é o dia-a-dia; é o trabalho; é o ir
fazendo; e resistindo, nas festas como nas lutas.
Há uma frase do Jerónimo de Sousa no
comício de encerramento que diz tudo. A propósito de Cuba (que não está a
atravessar um período particularmente feliz), diz que “resistir já é
vencer”.
É verdade – sobretudo se dermos a
devida importância ao “já”. Aquele “já” é o contrário da pressa, mas é também
“agora”.
Na Festa do Avante não se vêem
comunistas desiludidos ou frustrados. Nem tão pouco delirantemente esperançosos.
A verdade é que se sente a consciência de que as coisas, por muito más que
estejam, poderiam estar piores. Se não fossem os comunistas:
eles.
Há um contentamento que é próprio
dos resistentes. Dos que existem apesar de a maioria os considerar
ultrapassados, anacrónicos, extintos. Há um prazer na teimosia; em ser como se
é. Para mais, a embirração dos comunistas, comparada com as dos outros partidos,
é clássica e imbatível: a pobreza. De Portugal e de metade do mundo, num
Portugal e num mundo onde uns poucos têm muito mais do que alguma vez poderiam
precisar.
Na Festa do Avante sente-se a
satisfação de chatear. O PCP chateia. Os sindicatos chateiam. A dimensão e o
êxito da Festa chateiam. Põem em causa as desculpas correntes da apatia. Do
'ensimesmamento' online, do relativismo ou niilismo ideológico. Chatear é uma
forma especialmente eficaz de resistir. Pode ser miudinho – mas, sendo
constante, faz a diferença.
Resistir é já vencer. A Festa do
Avante é uma vitória anualmente renovada e ampliada dessa resistência. ...
Verdade se diga, já não é sem dificuldade que resisto. Quando se despe um
preconceito, o que é que se veste em vez dele? Resta-me apenas a independência
de espírito para exprimir a única reacção inteligente a mais uma Festa do
Avante: dar os parabéns a quem a fez e mais outros a quem lá esteve. Isto é, no
caso pouco provável de não serem as mesmíssimas pessoas.
Parabéns!"
MIGUEL ESTEVES CARDOSO - Revista
'SÁBADO'
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