«Nação
valente e imortal» por
António Lobo Antunes
Crónica
na Visão da semana de 05.04.2012.
Boa demais para deixar passar sem partilhar aqui:
Agora sol na rua a
fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de
saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto
tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e
nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E
de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente,
mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser
ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por
exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho,
coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais
aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e
só por orgulho não estendem a mão à caridade. O senhor Rui Pedro Soares, os
senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias
deles. Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos,
reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que
pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu
em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós,
por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do
que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos
em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de
respeito. Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá
decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a
ver
- Senta-te aqui ao
meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao
meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao
meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos,
pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos,
gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração
puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a
bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E
melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos
banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham,
os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar
que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas
medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de
cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os
Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A
transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade?
Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos
sapatos.
Vale e Azevedo para
os Jerónimos, já!
Loureiro para o
Panteão já!
Jorge Coelho para o
Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre
de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a
Batalha.
Fora com o Soldado
Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros
de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões
passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja
espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração
nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa:
libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase
nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o
senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde
o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do
Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer,
tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca
vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos,
por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai
bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam
este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta
do jantar. Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise
mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a
crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns
violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao
olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do
lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de
Carnaval.
Para isso já há
dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes,
cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros?
Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa
cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos
peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta
disto.
Sinceramente, sejamos
justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes:
desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia,
ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da
mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de,
fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e
beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa
obrigação, felizes.
05.04.2012
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