LEITURAS

quarta-feira, 27 de junho de 2012

PORTUGAL VISTO POR LOBO ANTUNES


Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida.

Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda 
compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.

Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, 
culpamos logo os governos.

Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para 
nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. 
Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico 
silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias 
Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não 
esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, 
que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não 
estendem a mão à caridade.

O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto 
da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles.

Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam 
honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns 
sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.

O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O 
senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por 
pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda 
piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a 
meter os beneméritos em tribunal. 
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.

Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá 
decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o 
estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo

que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa 
interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, 
gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e 
demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores 
escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os 
patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos 
obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos 
banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem,
penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de 
enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, 
ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas 
passaremos sem 
dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, 
por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste 
acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à 
sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão 
feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de 
pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja 
sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha 
de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca 
vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão 
presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor 
Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.

Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no 
Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.

Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, 
era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do 
Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos 
Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por 
favor deixem de pecar.

Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E 
tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este 
solzinho.

Agradeçam a Linha Branca.

Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.

Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a 
aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar 
aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a 
alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não 
comem carne mas podem comer 
lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das 
mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, 
e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.

Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, 
enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, 
a Academia Francesa.
Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os 
ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?

O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, 
não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que 
ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma 
que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, 
fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de 
litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, 
como é nossa obrigação, felizes.

(crónica satírica de António Lobo Antunes, in Visão abril 2012)

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